António Lobo Antunes 1 de setembro de 1942 (http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=302)
Vou ter de viver os próximos tempos em condições muito duras que não dependem de mim. Ser uma testemunha passiva do que se passa comigo, nada poder fazer para alterar seja o que for, desespera-me. Quando as coisas dependem da minha vontade eu luto. Quando não dependem fico reduzido a um espectador inútil, sofrendo o que se passa sem poder intervir, e a minha indignação e a minha angústia crescem. Aguenta-te. Mas é difícil aguentar passivamente. Noites sobressaltadas, despertares cansados, a raiva da injustiça. Vou arranjando forças para continuar a escrever mas esta pequena coisa dentro de mim tenta destruir-me a energia. Sempre aceitei mal o que vem de fora da minha vontade, sempre aceitei mal o que me é imposto autoritariamente, sem discussão nem razões. Aceito, até certo ponto, a incerteza do futuro, não aceito que essa incerteza não me consinta uma margem de liberdade. A minha obra não está completa, a minha vida não está completa, necessito de tempo ainda, dessa espécie de tumultuosa paz de que sou feito. E sinto-me sozinho nisto, com as pessoas que me são próximas a assistirem de fora, impotentes. Navego à deriva, porque me tiraram o leme. A minha existência é comezinha e sem importância: na minha opinião o meu trabalho não o é. Se me devolvessem a paz e a esperança em troca dos livros que escrevi não a aceitava. Orgulho-me deles, custaram-me a alma. Que silêncio nesta casa, em frente da minha dor, cuja presença me espanta. Não me faço perguntas nem encontro respostas. Devo esperar. E quando se acabar, a espera? Palavras, coisas, pessoas rodopiam-me em torno, grandes pássaros negros passam sobre mim, o meu corpo é um conjunto de articulações sem sentido. Os outros, os que me falam, seres quase sem nexo, separados de mim por um muro que não consigo transpor. Porém não oiço o que quero nem digo o que se me arrasta no fundo da alma. Fico num silêncio amargo, cheio de gritos mudos, zanga, insultos. Dentro em pouco os dados estarão lançados: e depois?
A minha principal sensação é de estranheza, de espanto. O mundo, à minha volta, alterou-se, e eu com ele. Hoje, por exemplo, está um dia de sol, e é apenas chuva que vejo. Muitos dos meus amigos morreram já, e dou-me conta, na carne, da falta que me fazem. Ernesto, Zé, Acácio, vários outros. Sinto o coração a bater, compassado, lento. Por enquanto acompanha-me, estamos juntos. Não quero aborrecer ninguém, tomar o tempo de ninguém, ser incómodo. As horas adquiriram, sem me dar conta, uma rapidez vertiginosa. Há pouco o meu primo Zé Maria desapareceu com a mais admirável das coragens. Receio não a ter. A minha cobardia assusta-me. A indiferença dos estranhos assusta-me. A mudez do telefone assusta-me. Ninguém me garante que isto é mentira e sinto-me cercado de vazio, um oco interno onde fervem pavores. Sou eu o que continua, ou o que desconheço o que seja no meu lugar? Tudo o que sei é que, dentro em pouco estarei de novo no bojo de uma máquina sem alma, terrivelmente objectiva. A máquina dirá às pessoas, as pessoas dir-me-ão a mim. E quem é o mim que as vai ouvir?
Para já oiço o monótono zumbido do mundo. Mais nada. E espero. É tremendo esperar sem conhecer a resposta, sem fazer a mínima ideia da resposta. Passei por isso em África, passei por isso há anos. Julgava ter terminado. Voltou.
E o que digo o que interessa às pessoas? O que pode interessar aos outros? A solidão cerca-me por todos os lados, não há uma fraçãozinha que se sinta acompanhada: podem estar por fora, a olhar. Não estão por dentro, a viver. Escrevo este texto como quem tenta não se afogar, sabendo que se afogará seja como for. É uma questão de tempo e o tempo é cruel.
- Cá me vou entretendo com as minhas mazelas
dizia-me um homem outro dia. E que impartilhável sofrimento no interior destas palavras. Depois apertámos a mão e foi-se embora, levando as mazelas com ele. Poderei ir-me embora também? O Sol cresceu, tudo está cheio de luz. Que absurdo isto que me sucede no meio de tanta luz. Lembro-me de Van Gogh a morrer num quarto de hospital depois dos tiros. Na parede aquele quadro dos corvos num campo de trigo. A enfermeira perguntou-lhe o que significava o quadro.
- É a morte
disse ele. A enfermeira voltou a olhar para a tela. Comentou
- Não parece uma morte triste
e o pintor respondeu
- E não é. Passa-se à clara luz do dia.
Que, ao menos, quando chegar o meu momento, tudo se passe à clara luz do dia. Comigo a ver, pela janela, as nuvens lá fora, deslizando, uma a uma, para leste. E eu, deitado numa cama qualquer, a partir com elas.
|
01 setembro 2012
A clara luz do dia...
Subscrever:
Mensagens (Atom)