01 dezembro 2008

José Saramago

"Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou vento de cabelos que sacode.


Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontuam de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.

Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.

Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros".

José Saramago (com Maria Pagés e Luis Pastor), "Ergo uma rosa" em Os Poemas Possíveis, 1966.




José Saramago, 16 de Novembro de 1922, Azinhaga, Portugal (http://www.josesaramago.org/Entrada_Fundador.aspx e http://blog.josesaramago.org/), Nobel da Literatura em 1998 (http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998/lecture-p.html)

“(…) O director da escola do Largo do Leão, para onde fui transferido depois de passar a primeira classe na Rua Martens Ferrão, e cujo nome próprio não consigo recordar, tinha o raro apelido de Vairinho (hoje não encontro nenhum Vairinho na lista telefónica de Lisboa - Nota 1 da autora do Blog para José Saramago: junto a fotografia de João de Sousa Vairinho para que continue a recordá-lo, tal como o conheceu») e era um homem alto e magro, de rosto severo, que disfarçava a calvície puxando o cabelo de um dos lados e assentando-o com fixador, tal como fazia meu pai, embora eu deva confessar que o penteado do mestre me parecia muito mais apresentável que o do meu progenitor. A mim, já naquela tenra idade se me afigurava um tanto caricato (perdoe-se a falta de respeito) o aspecto do meu pai, sobretudo quando o via ao levantar da cama, com aquelas farripas penduradas para o seu lado natural e a pele branca do crânio de urna palidez mole, pois que, sendo ele polícia, tinha de andar a maior parte do tempo com o boné do uniforme posto. Quando fui para a escola do Largo do Leão, a professora da segunda classe, que ignorava até onde o recém-chegado teria acedido no aproveitamento das matérias dadas e sem qualquer motivo para esperar da minha pessoa quaisquer assinaláveis sabedorias (reconheça-se que não tinha obrigação de pensar outra coisa), mandou-me sentar entre os mais atrasados, os quais, por virtude da disposição da sala, ficavam numa espécie de limbo, à direita da professora e de frente para os adiantados que deviam servir-lhes de exemplo. Logo poucos dias depois de as aulas terem começado, a professora, com o fito de averiguar como andávamos nós de familiaridade com as ciências ortográficas, fez-nos um ditado. Eu tinha então uma caligrafia redonda e escorreita, aprumada, boa para a idade. Ora, aconteceu que o Zezito (não tenho culpa do diminutivo, era assim que a família me chamava, muito pior teria sido se o meu nome fosse Manuel e me tratassem por Nelinho ... ) cometeu um único erro no ditado, e mesmo assim erro não era bem, se considerarmos que as letras da palavra estavam lá todas, embora trocadas duas delas: em vez de «classe» tinha escrito «calsse». Excesso de concentração, talvez. E foi aqui, agora que o penso, que a história da minha vida começou. (Nas aulas desta escola, e provavelmente em todas as outras do país, as carteiras duplas a que então nos sentávamos eram exactamente iguais àquelas que, cinquenta anos depois, em 1980, fui encontrar na escola da aldeia de Cidadelhe, no concelho de Pinhel, quando andava a conhecer gentes e terras para as meter na Viagem a Portugal. Confesso que não pude disfarçar a comoção quando pensei que talvez me tivesse sentado a uma delas na primavera dos tempos. Mais decrépitas, manchadas e riscadas pelo uso e pela falta de cuidados, era como se as tivessem levado do Largo do Leão e de 1929 para ali.) Voltemos ao fio do relato. O melhor aluno da classe ocupava uma carteira logo à entrada da sala e ali desempenhava a honradíssima função de porteiro da aula, pois era a ele que competia abrir a porta quando alguém batia de fora. Ora, a professora, surpreendida pelo talento ortográfico de um garoto que tinha acabado de chegar doutra escola, portanto suspeito de cábula por definição, mandou que eu me fosse sentar no lugar de primeiro da classe, donde, claro está, não teve outro remédio senão levantar-se o monarca destronado que lá se encontrava. Vejo-me, como se agora mesmo estivesse a suceder, arrebanhadas à pressa as minhas coisas, atravessando a aula no sentido longitudinal perante o olhar perplexo dos colegas (admirativo? invejoso?), e, com o coração em desordem, sentar-me no meu novo lugar. Quando o PEN Clube me atribuiu o seu prémio pelo romance Levantado do Chão, contei esta história para assegurar às pessoas presentes que nenhum momento de glória presente ou futura poderia, nem por sombras, comparar-se àquele. Hoje, porém, não consigo impedir-me de pensar no pobre rapaz, friamente desalojado por uma professora que devia saber tanto de pedagogia infantil como eu de partículas subatómicas, se já então se falava delas. Como iria ele comunicar aos pais, com razão orgulhosos do seu rebento, que havia sido apeado do pedestal por causa de um forasteiro desconhecido que acabara de aparecer do outro lado do horizonte, como Tom Mix e o seu cavalo Raio? Não recordo se cheguei a fazer amizade com o desafortunado colega, o mais provável seria que ele não quisesse nem ver-me. Aliás, se a memória não me está a enganar, creio que pouco tempo depois fui transferido para outra aula, quem sabe se para resolver o problema criado pela pouca sensibilidade da professora. Não é difícil imaginar um pai furibundo a entrar pelo gabinete do director Vairinho adentro para lavrar o seu veemente protesto contra a discriminação (usava-se já a palavra?) de que o filho havia sido vítima. Embora, verdade seja dita, eu tenha a impressão de que os pais, naqueles primitivos tempos, não fossem muito de importar-se com pormenores destes. Tudo se resumia a querer saber se passaste ou não passaste, se foste aprovado ou chumbaste. O resto não constaria da pauta. Quando passei da segunda classe para a terceira, o professor Vairinho mandou chamar o meu pai. Que eu era aplicado, bom estudante, disse, e portanto muito capaz de fazer a terceira e a quarta classes em um ano só. Para a terceira classe frequentaria a aula normal, enquanto as complexas matérias da quarta me seriam dadas em lições particulares do mesmo Vairinho, que, aliás, tinha a casa na própria escola, no último andar. Meu pai esteve de acordo, tanto mais que o arranjo lhe saía grátis, o professor trabalhava pela boa causa. Não iria ser eu o único beneficiário deste trato especial, havia mais três colegas na mesma situação, dois deles de famílias mais ou menos acomodadas. Sobre o terceiro, só me lembro de lhe ouvir dizer que a mãe era viúva. Daqueles, um chamava-se Jorge, o outro, Maurício, do órfão até o nome se me foi, mas vejo-lhe a figura, magra, um pouco encurvada. Ao Jorge, salvo erro, já começava a apontar-lhe o buço. Quanto ao Maurício, esse era um autêntico demónio de calções, conflituoso, arrebatado, sempre à procura de brigas: uma vez, num acesso de fúria, atirou-se a um colega e espetou-lhe uma caneta no peito. Com um temperamento assim, com um tal mau génio, que terá feito este rapaz na vida? Éramos amigos, mas sem grandes confianças. Eles nunca foram a minha casa (vivendo nós como vivíamos, em quartos alugados, jamais me passaria pela cabeça a ideia de os convidar), e eu também nunca fui chamado a casa deles. Convivência, relações, brincadeiras, só as do recreio. A propósito (teria sido outra manifestação da minha presumível dislexia?), lembro-me de por essa altura confundir a palavra «retardador» com «redentor», e da maneira mais extravagante que se possa imaginar. Tinha aparecido, ou eu o descobri só então, aquele efeito de lentidão das imagens cinematográficas a que precisamente se dava o nome de «efeito de retardador». Ora, aconteceu que, no meio de uma brincadeira, eu tinha de me deixar cair ao chão, mas resolvi fazê-lo muito devagar, ao mesmo tempo que ia dizendo: «É ao redentor.» Os outros não ligaram importância à palavra: se calhar, o que eu sabia mal, eles nem mal saberiam. Fora da escola, recordo algumas grandiosas púrrias com miúdos das quintas próximas, batalhas à pedrada que por felicidade nunca chegaram a fazer sangue nem lágrimas, mas em que não se poupava o suor. Os escudos eram tampas de panelas que íamos rebuscar nos entulhos. Embora eu nunca tenha sido de extremadas valentias, lembro-me de uma vez ter atacado debaixo de uma chuva de pedras, e só por esse heróico gesto ter posto em debandada os dois ou três inimigos que se nos opunham. Ainda hoje tenho a impressão de que, ao avançar assim, a cara descoberta, desobedecia a uma regra tácita de combate, que seria a de manter-se cada exército nas suas posições e a partir delas, sem cargas nem contra-cargas, alvejar o adversário. Mais de setenta anos depois, por entre as brumas da memória, consigo ver-me de tampa de tacho na mão esquerda e uma pedra na mão direita (duas nos bolsos dos calções), enquanto a fuzilaria dos dois lados passava por cima da minha cabeça. Das aulas particulares do professor Vairinho, o que recordo melhor era o momento em que, concluída a lição, com os quatro alinhados em frente da secretária, sobre o estrado, ele escrevia na sua bela letra, abreviando em M, S, B e Opt, nos nossos caderninhos de capa preta, as notas do dia: mau, suficiente, bom, óptimo. Ainda conservo o meu e nele se pode ver que bom estudante fui nesse tempo: os «maus» foram pouquíssimos, os «suficientes» não muitos, os «bons» abundavam e não faltaram os «óptimos». Meu pai assinava em baixo na página diária, assinava Sousa sem mais, que a ele, como já deixei explicado, nunca lhe agradou o Saramago que o filho o havia obrigado a adoptar. Para orgulho da família, tanto a da cidade como a da aldeia, saí aprovado com distinção no exame da quarta classe. A prova oral realizou-se numa sala do rés-do-chão (rés-do-chão em relação às traseiras do prédio, que davam para o recreio, mas primeiro andar em relação à rua), estava uma manhã transparente, de sol brilhante, pelas janelas abertas de um lado e do outro corria uma aragem, as árvores do recreio eram verdes e frondosas (nunca mais tornaria a brincar à sombra delas), e o meu fato novo, se não é falsa memória minha, apertava-me debaixo dos braços. Recordo-me de ter hesitado a uma pergunta do júri (talvez não soubesse responder, talvez a tartamudez me tivesse travado a língua como às vezes sucedia), e que alguém, um homem bastante novo que eu nunca tinha visto na escola, encostado ao alizar da porta mais próxima das que davam para o recreio, a três passos de mim, me soprou subtilmente a resposta. Por que estava ele ali, e não na sala, como toda a gente? Mistério. Foi isto no ano de 1933, mês de Junho, e eu entraria em Outubro no Liceu Gil Vicente, instalado nesse tempo no antigo Mosteiro de São Vicente de Fora. Durante algum tempo pensei que uma coisa tinha necessariamente de ir com a outra: o nome do liceu com o nome do santo ... Não se podia esperar que eu soubesse quem era esse tal Gil Vicente.(…)” in As Pequenas Memórias, 2006.

Nota 2 da autora do Blog para José Saramago - João de Sousa Vairinho (1877-1945), o director da escola do largo do Leão e meu bisavô, teve quatro filhos, o Victor (meu avô), o João, a Maria Faustina e a Maria Emília, todos a viver em casa do pai em 1933. Talvez o Victor, ou o João, solucionem o "mistério" do "homem bastante novo (...) encostado ao alizar da porta mais próxima (...)".

A maior flor do mundo, 2001, narrada e "interpretada", por José Saramago