24 dezembro 2008

O Suave Milagre, um conto de Eça de Queiroz


Madonna and Child with St Anne and the Young St John (Leonardo da Vinci, 1507-08), National Gallery, London



Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades: − mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganin, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.

Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias de Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog - o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos e meteu pensativamente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicómoro, não surgiria uma claridade: e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos.

Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas − e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.

Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galileia, que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras − Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolónio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o Subtil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos: com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto: e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar.

Os servos apertaram os cinturões de couro - e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o Lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o Lago de Tiberíade resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro e de alvos terraços por entre os palmares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas. Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o Rabi atravessara o Oásis de Engaddi, depois se adiantara para além... − Mas onde, “além”? − Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de Além-Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio - e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead: e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela Lua-nova, um Rabi maravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito duma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às Nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosas, embarcara no Lago num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse Profeta novo da Galileia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada - e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso:

−Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém! Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores...

E como os servos recuaram ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados - o furioso Doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando: Racca! Racca! e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam, − e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia.

Por esse tempo, um Centurião Romano, Públio Sétimo, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática, e gozava, como favor supremo dos Deuses, a amizade de Flaco, Legado Imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a Lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um momento a ave, torneando até bater morta sobre as rochas: − depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar.

Então Sétimo, ouvindo contar, a mercadores de Chorazim, deste Rabi admirável, tão potente sobre os Espíritos que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem pela Galileia, e por todas as cidades da Decápola, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira - e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesareia até ao Lago corta toda a Tetráquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicómoros.

Assim correram a Baixa Galileia - e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens: e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas Sinagogas e batiam sacrilegamente com os punhos das espadas nas Thebahs, os Santos Armários de cedro que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hebron arrastaram os Solitários pelas barbas para fora das grutas para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi: − e dois mercadores Fenícios que vinham de Jope com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dramas a cada Decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de Idumeia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as Más Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Áscalon: não encontraram Jesus: e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes.

Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:

− Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos Imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!

Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas.

Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu o seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundância maior que a Corte de Salomão.

A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o desejavam, que se desperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:

− Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico, e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab. Sétimo é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:

− Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!

E a mãe, em soluços:

− Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:

− Mãe, eu queria ver Jesus...

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

− Aqui estou.
José Maria Eça de Queiroz, Contos, 1902 (Publicação Póstuma)

01 dezembro 2008

José Saramago

"Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou vento de cabelos que sacode.


Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontuam de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.

Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.

Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros".

José Saramago (com Maria Pagés e Luis Pastor), "Ergo uma rosa" em Os Poemas Possíveis, 1966.




José Saramago, 16 de Novembro de 1922, Azinhaga, Portugal (http://www.josesaramago.org/Entrada_Fundador.aspx e http://blog.josesaramago.org/), Nobel da Literatura em 1998 (http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998/lecture-p.html)

“(…) O director da escola do Largo do Leão, para onde fui transferido depois de passar a primeira classe na Rua Martens Ferrão, e cujo nome próprio não consigo recordar, tinha o raro apelido de Vairinho (hoje não encontro nenhum Vairinho na lista telefónica de Lisboa - Nota 1 da autora do Blog para José Saramago: junto a fotografia de João de Sousa Vairinho para que continue a recordá-lo, tal como o conheceu») e era um homem alto e magro, de rosto severo, que disfarçava a calvície puxando o cabelo de um dos lados e assentando-o com fixador, tal como fazia meu pai, embora eu deva confessar que o penteado do mestre me parecia muito mais apresentável que o do meu progenitor. A mim, já naquela tenra idade se me afigurava um tanto caricato (perdoe-se a falta de respeito) o aspecto do meu pai, sobretudo quando o via ao levantar da cama, com aquelas farripas penduradas para o seu lado natural e a pele branca do crânio de urna palidez mole, pois que, sendo ele polícia, tinha de andar a maior parte do tempo com o boné do uniforme posto. Quando fui para a escola do Largo do Leão, a professora da segunda classe, que ignorava até onde o recém-chegado teria acedido no aproveitamento das matérias dadas e sem qualquer motivo para esperar da minha pessoa quaisquer assinaláveis sabedorias (reconheça-se que não tinha obrigação de pensar outra coisa), mandou-me sentar entre os mais atrasados, os quais, por virtude da disposição da sala, ficavam numa espécie de limbo, à direita da professora e de frente para os adiantados que deviam servir-lhes de exemplo. Logo poucos dias depois de as aulas terem começado, a professora, com o fito de averiguar como andávamos nós de familiaridade com as ciências ortográficas, fez-nos um ditado. Eu tinha então uma caligrafia redonda e escorreita, aprumada, boa para a idade. Ora, aconteceu que o Zezito (não tenho culpa do diminutivo, era assim que a família me chamava, muito pior teria sido se o meu nome fosse Manuel e me tratassem por Nelinho ... ) cometeu um único erro no ditado, e mesmo assim erro não era bem, se considerarmos que as letras da palavra estavam lá todas, embora trocadas duas delas: em vez de «classe» tinha escrito «calsse». Excesso de concentração, talvez. E foi aqui, agora que o penso, que a história da minha vida começou. (Nas aulas desta escola, e provavelmente em todas as outras do país, as carteiras duplas a que então nos sentávamos eram exactamente iguais àquelas que, cinquenta anos depois, em 1980, fui encontrar na escola da aldeia de Cidadelhe, no concelho de Pinhel, quando andava a conhecer gentes e terras para as meter na Viagem a Portugal. Confesso que não pude disfarçar a comoção quando pensei que talvez me tivesse sentado a uma delas na primavera dos tempos. Mais decrépitas, manchadas e riscadas pelo uso e pela falta de cuidados, era como se as tivessem levado do Largo do Leão e de 1929 para ali.) Voltemos ao fio do relato. O melhor aluno da classe ocupava uma carteira logo à entrada da sala e ali desempenhava a honradíssima função de porteiro da aula, pois era a ele que competia abrir a porta quando alguém batia de fora. Ora, a professora, surpreendida pelo talento ortográfico de um garoto que tinha acabado de chegar doutra escola, portanto suspeito de cábula por definição, mandou que eu me fosse sentar no lugar de primeiro da classe, donde, claro está, não teve outro remédio senão levantar-se o monarca destronado que lá se encontrava. Vejo-me, como se agora mesmo estivesse a suceder, arrebanhadas à pressa as minhas coisas, atravessando a aula no sentido longitudinal perante o olhar perplexo dos colegas (admirativo? invejoso?), e, com o coração em desordem, sentar-me no meu novo lugar. Quando o PEN Clube me atribuiu o seu prémio pelo romance Levantado do Chão, contei esta história para assegurar às pessoas presentes que nenhum momento de glória presente ou futura poderia, nem por sombras, comparar-se àquele. Hoje, porém, não consigo impedir-me de pensar no pobre rapaz, friamente desalojado por uma professora que devia saber tanto de pedagogia infantil como eu de partículas subatómicas, se já então se falava delas. Como iria ele comunicar aos pais, com razão orgulhosos do seu rebento, que havia sido apeado do pedestal por causa de um forasteiro desconhecido que acabara de aparecer do outro lado do horizonte, como Tom Mix e o seu cavalo Raio? Não recordo se cheguei a fazer amizade com o desafortunado colega, o mais provável seria que ele não quisesse nem ver-me. Aliás, se a memória não me está a enganar, creio que pouco tempo depois fui transferido para outra aula, quem sabe se para resolver o problema criado pela pouca sensibilidade da professora. Não é difícil imaginar um pai furibundo a entrar pelo gabinete do director Vairinho adentro para lavrar o seu veemente protesto contra a discriminação (usava-se já a palavra?) de que o filho havia sido vítima. Embora, verdade seja dita, eu tenha a impressão de que os pais, naqueles primitivos tempos, não fossem muito de importar-se com pormenores destes. Tudo se resumia a querer saber se passaste ou não passaste, se foste aprovado ou chumbaste. O resto não constaria da pauta. Quando passei da segunda classe para a terceira, o professor Vairinho mandou chamar o meu pai. Que eu era aplicado, bom estudante, disse, e portanto muito capaz de fazer a terceira e a quarta classes em um ano só. Para a terceira classe frequentaria a aula normal, enquanto as complexas matérias da quarta me seriam dadas em lições particulares do mesmo Vairinho, que, aliás, tinha a casa na própria escola, no último andar. Meu pai esteve de acordo, tanto mais que o arranjo lhe saía grátis, o professor trabalhava pela boa causa. Não iria ser eu o único beneficiário deste trato especial, havia mais três colegas na mesma situação, dois deles de famílias mais ou menos acomodadas. Sobre o terceiro, só me lembro de lhe ouvir dizer que a mãe era viúva. Daqueles, um chamava-se Jorge, o outro, Maurício, do órfão até o nome se me foi, mas vejo-lhe a figura, magra, um pouco encurvada. Ao Jorge, salvo erro, já começava a apontar-lhe o buço. Quanto ao Maurício, esse era um autêntico demónio de calções, conflituoso, arrebatado, sempre à procura de brigas: uma vez, num acesso de fúria, atirou-se a um colega e espetou-lhe uma caneta no peito. Com um temperamento assim, com um tal mau génio, que terá feito este rapaz na vida? Éramos amigos, mas sem grandes confianças. Eles nunca foram a minha casa (vivendo nós como vivíamos, em quartos alugados, jamais me passaria pela cabeça a ideia de os convidar), e eu também nunca fui chamado a casa deles. Convivência, relações, brincadeiras, só as do recreio. A propósito (teria sido outra manifestação da minha presumível dislexia?), lembro-me de por essa altura confundir a palavra «retardador» com «redentor», e da maneira mais extravagante que se possa imaginar. Tinha aparecido, ou eu o descobri só então, aquele efeito de lentidão das imagens cinematográficas a que precisamente se dava o nome de «efeito de retardador». Ora, aconteceu que, no meio de uma brincadeira, eu tinha de me deixar cair ao chão, mas resolvi fazê-lo muito devagar, ao mesmo tempo que ia dizendo: «É ao redentor.» Os outros não ligaram importância à palavra: se calhar, o que eu sabia mal, eles nem mal saberiam. Fora da escola, recordo algumas grandiosas púrrias com miúdos das quintas próximas, batalhas à pedrada que por felicidade nunca chegaram a fazer sangue nem lágrimas, mas em que não se poupava o suor. Os escudos eram tampas de panelas que íamos rebuscar nos entulhos. Embora eu nunca tenha sido de extremadas valentias, lembro-me de uma vez ter atacado debaixo de uma chuva de pedras, e só por esse heróico gesto ter posto em debandada os dois ou três inimigos que se nos opunham. Ainda hoje tenho a impressão de que, ao avançar assim, a cara descoberta, desobedecia a uma regra tácita de combate, que seria a de manter-se cada exército nas suas posições e a partir delas, sem cargas nem contra-cargas, alvejar o adversário. Mais de setenta anos depois, por entre as brumas da memória, consigo ver-me de tampa de tacho na mão esquerda e uma pedra na mão direita (duas nos bolsos dos calções), enquanto a fuzilaria dos dois lados passava por cima da minha cabeça. Das aulas particulares do professor Vairinho, o que recordo melhor era o momento em que, concluída a lição, com os quatro alinhados em frente da secretária, sobre o estrado, ele escrevia na sua bela letra, abreviando em M, S, B e Opt, nos nossos caderninhos de capa preta, as notas do dia: mau, suficiente, bom, óptimo. Ainda conservo o meu e nele se pode ver que bom estudante fui nesse tempo: os «maus» foram pouquíssimos, os «suficientes» não muitos, os «bons» abundavam e não faltaram os «óptimos». Meu pai assinava em baixo na página diária, assinava Sousa sem mais, que a ele, como já deixei explicado, nunca lhe agradou o Saramago que o filho o havia obrigado a adoptar. Para orgulho da família, tanto a da cidade como a da aldeia, saí aprovado com distinção no exame da quarta classe. A prova oral realizou-se numa sala do rés-do-chão (rés-do-chão em relação às traseiras do prédio, que davam para o recreio, mas primeiro andar em relação à rua), estava uma manhã transparente, de sol brilhante, pelas janelas abertas de um lado e do outro corria uma aragem, as árvores do recreio eram verdes e frondosas (nunca mais tornaria a brincar à sombra delas), e o meu fato novo, se não é falsa memória minha, apertava-me debaixo dos braços. Recordo-me de ter hesitado a uma pergunta do júri (talvez não soubesse responder, talvez a tartamudez me tivesse travado a língua como às vezes sucedia), e que alguém, um homem bastante novo que eu nunca tinha visto na escola, encostado ao alizar da porta mais próxima das que davam para o recreio, a três passos de mim, me soprou subtilmente a resposta. Por que estava ele ali, e não na sala, como toda a gente? Mistério. Foi isto no ano de 1933, mês de Junho, e eu entraria em Outubro no Liceu Gil Vicente, instalado nesse tempo no antigo Mosteiro de São Vicente de Fora. Durante algum tempo pensei que uma coisa tinha necessariamente de ir com a outra: o nome do liceu com o nome do santo ... Não se podia esperar que eu soubesse quem era esse tal Gil Vicente.(…)” in As Pequenas Memórias, 2006.

Nota 2 da autora do Blog para José Saramago - João de Sousa Vairinho (1877-1945), o director da escola do largo do Leão e meu bisavô, teve quatro filhos, o Victor (meu avô), o João, a Maria Faustina e a Maria Emília, todos a viver em casa do pai em 1933. Talvez o Victor, ou o João, solucionem o "mistério" do "homem bastante novo (...) encostado ao alizar da porta mais próxima (...)".

A maior flor do mundo, 2001, narrada e "interpretada", por José Saramago