01 dezembro 2012

Noémia

"Poor children eating at the Day Care Nursery while their mothers work", Portugal, 1940, by Bernard Hoffman in http://images.google.com/hosted/life/b5fc3f4f38e2113b.html

Chamava-se Noémia,
Nove anos de idade
Cheios de maturidade.

Vivia do outro lado
Da minha rua,
Do meu mundo
Mas a casa de paredes nuas
Tinha um encanto profundo.

Era para mim um espanto
Vê-la subir para um banco
Para chegar à panela
E fazer nela
Com rapidez e perfeição
Uma sopa de feijão
Que distribuía por seis tigelas
Uma para mim, outra para ela
Quatro para os irmãos.

No ano primeiro
Da nossa amizade
Tinha eu sete anos de idade
Por alturas do Natal
Andava num alvoroço
Apanhando musgo no quintal
Nos muros, à roda do poço
Para enfeitar o presépio
No largo parapeito
Da janela de granito
Tendo por fundo
O céu, o infinito.

O presépio com a estrela
Tão grande e tão bela
A cabana pobrezinha
Onde o Menino despido
Apenas era aquecido
Pelo bafo dos animais
Como se não tivesse pais
Para O aquecer
Para O proteger.

Quis que a Noémia O visse
E a sua prenda pedisse.

Com um sorriso triste
Respondeu, conformada:
- Na casa dos pobres
O Menino Jesus não deixa nada.

Não sei descrever o que senti
Mas qualquer coisa se quebrou
Dentro de mim
Se estilhaçou
No meu peito de criança
Numa angústia, numa desconfiança.

Não fomos à Missa do Galo
Pois nevara fortemente.
Mas antes de abrirmos os presentes,
O meu Pai pegou no Menino
Deu-O a beijar a toda a gente.

Tinha lágrimas nos olhos
Mas a voz não tremia
Quando meu Pai fitei
Para, firme, declarar:
— Estou zangada com Ele,
Não O quero beijar.

O meu Pai não me ralhou
E o Menino Jesus
Nas palhinhas deitou.

Mas quis saber a razão
Por que estava tão zangada
Com o Menino Jesus
Fonte de toda a esperança
Todo amor, todo bondade
Tão amigo das crianças.

- Não é nada — afirmei
Segura da minha verdade —.
A Noémia não faz maldades
Não tem tempo para brincar
Passa os dias a trabalhar
Nem sequer pode estudar.
E porque são pobrezinhos
O Menino Jesus
Nada deixa nos sapatinhos.

Foi nessa noite linda
Que o meu Pai me explicou
Com uma ternura infinda
Que este Natal de presentes
De vaidades e consumismo
Não é o Natal de Jesus.
Dele são a paz e a luz.
Dos homens, o materialismo.

Mas como nesse Natal
A Noémia afinal
Teve uma boneca
E houve presentes
Para toda a gente
Na casa do outro lado
Da minha rua
Dei por mim a perguntar:
— Foi por eu me zangar?

Este Natal estou triste
Triste e até desesperada
Com tudo quanto vejo
E não desejo.
O que irá acontecer
Se ao Menino disser
Que estou muito zangada?


Quem sabe se vai surgir
Um milénio de amor
Um mundo novo
Com crianças a sorrir.


Talvez nunca mais veja
Crianças carbonizadas
Em barracas desumanizadas.


Talvez nunca mais veja
Crianças abandonadas
Nos vãos das escadas
Nos passeios das ruas
Tendo por coberta a lua
Jornais velhos e cartão
Tratadas abaixo de cão
(Metáfora já sem valor
Pois o novo significado
De uma vida abjecta
Vai ser vida de criança
Onde não mora o amor
Sem lugar para a esperança).

Talvez nunca mais veja
Os meninos desta Terra
Na droga
Na prostituição
Cheios de fome
De carinho e de pão.
Pequenos Meninos Jesus
Que vão ser espancados
Cuspidos
Escarnecidos
Que vão ser outros Cristos
— não santificados —
Que vão ser crucificados
Por culpa dos nossos pecados.


Se a minha zanga
Para alguma coisa prestar
Se puder quebrar
Esta inércia em que vivemos
Este egoísmo que temos
A pena hipócrita que sentimos
— apenas e só —
Quando as imagens vemos.


Se o meu grito
Eco encontrar
E se multiplicar
Num clamor
Talvez ele possa chegar
Ao coração dos homens
E despertar o amor.

Ai, meu Menino Jesus
Pequeno raio de luz
Não sou a criança inocente
Que Contigo se zangou
Mas sinto-me impotente
Não sei a quem me queixar.
A quem hei-de implorar
Que as Noémias deste mundo
Tenham pão, um lar
E bonecas para brincar?


Ai, meu Menino Jesus
Meu doce raio de luz
Tão pobre
Tão despido
Tão desvalido:
 — Estou zangada Contigo!

 
Maria Ivone Vairinho